Colunista Graça Martinho (Resíduos - Tendências): Economia Circular, o grande dilema social

Colunista Graça Martinho (Resíduos - Tendências): Economia Circular, o grande dilema social

Desde a década de 70 que o conceito de economia circular “circula” entre ambientalistas, académicos e empresários, numa aparente tentativa de convergência entre a economia e o ambiente. A sua introdução na agenda política da União Europeia deve-se principalmente a Walter Stahel, coautor do relatório elaborado para a Comissão Europeia em 1976, "O Potencial de substituição de mão-de-obra por energia”, no qual é transmitida a visão de uma economia em loops (ou circular), baseada na gestão sustentável dos recursos e na prevenção de resíduos, e nos seus efeitos positivos para a criação de empregos, inovação e competitividade.

Contudo, a economia circular só ganhou maior visibilidade mediática em 2010, quando Ellen MacArthur (a famosa velejadora que em 2005 bateu o recorde de navegação solitária sem escalas à volta do mundo) criou a Fundação Ellen MacArthur, uma das instituições que mais têm contribuído e influenciado a comunidade política e empresarial, pelas suas iniciativas e pelo relatório publicado em 2012, “Rumo à economia circular: racionalidade económica e de negócios para uma transição acelerada”, muito inspirado em anteriores conceitos de sustentabilidade e correntes de pensamento como o Design Regenerativo (John Lyle, 1996), a Biomimética (Janine Benyus, 1997), o “Do Berço ao Berço” (Braungart e William McDonough, 2002), a Economia de Desempenho (John Lyl, 2006) ou ainda a Economia Azul (Gunter Pauli, 2010).

A nível da política europeia, os primeiros passos foram dados em dezembro de 2012, quando a Comissão Europeia publicou o documento “Manifesto para uma Europa eficiente na utilização de recursos”, que aborda a necessidade da Europa transitar para uma economia regenerativa circular, mais eficiente na utilização dos recursos e com menor produção de resíduos, onde o valor dos produtos, materiais e recursos são mantidos na economia tanto tempo quanto possível, como forma de garantir futuros empregos, competitividade, inovação, investimento e oportunidades para novos modelos de negócios.

Em julho de 2014 a Comissão apresentou a primeira proposta legislativa, o pacote da economia circular, a qual foi retirada pela Comissão no início de 2015, sob o pretexto de desregulamentação, mas que na realidade foi o resultado de críticas e pressões que recebeu do setor empresarial. Contudo, a Comissão prometeu o relançamento deste pacote, o que aconteceu no passado dia 2 de dezembro de 2015. Comparativamente à proposta de 2014, este pacote introduz algumas melhorias mas revela-se menos ambicioso nalgumas metas.

O que melhorou:

- Clarificação dos limites à deposição em aterro, sendo indicado um limite de 10% para os resíduos domésticos, até 2030, mas que pode incluir resíduos recicláveis e compostáveis (na proposta anterior não podiam);

- Foco na redução e utilização de recursos na política de ecodesign, na proposta anterior não foram definidos prazos, na atual são dados prazos indicativos;

- Prevenir a obsolescência de produtos, assunto não abordado em 2014, prevê-se um programa de testes independente sobre a obsolescência planeada (2018) como parte do plano de ação não vinculativa;

- Introdução de normas de qualidade para as matérias-primas secundárias (em especial para plásticos), mas como parte do plano de ação não vinculativa.

- Informações sobre os recursos utilizados num produto, melhorar o intercâmbio de informação entre os fabricantes e o recicladores em produtos eletrónicos.

O que piorou:

- A taxa de reciclagem de resíduos urbanos baixou de 70% para 65%, até 2030;

- A meta para a taxa de reciclagem de resíduos de embalagens baixou de 80% para 75%, até 2030;

- A taxa indicativa da redução de resíduos alimentares desapareceu, na proposta de 2014 era de 30% até 2025, tendo como base o ano 2017;

- Não é definida qualquer meta ou prazo para a separação seletiva de resíduos orgânicos, apenas é indicado que se deve assegurar a recolha separada, desde que técnica, económica e ambientalmente possível, na proposta anterior era indicado o mesmo objetivo mas para ser alcançado até 2025;

- A meta para a eficiência dos recursos nem sequer é mencionada, na proposta anterior era referida a meta de 30% com base no consumo de matérias-primas.

O debate político em Bruxelas tem-se centrado principalmente na gestão de resíduos e pouco no ecodesign e muito menos na alteração dos atuais padrões de consumo, a parte mais difícil do ciclo. De facto, o nosso modelo económico tem sobrevivido graças ao forte aumento do consumo que se verificou nas últimas décadas, conseguido à custa da criação de novas necessidades e ao estímulo do desejo pela publicidade, à redução da duração de vida média dos objetos por um processo de encurtamento “psico-socio-tecnológico”, acelerado pelo fenómeno da obsolência. A sociedade atual apresenta aspirações contraditórias, pretende-se um forte crescimento industrial, gerador de empregos e de elevados rendimentos, à custa do consumo, e, simultaneamente, um modo de vida menos febril num ambiente de melhor qualidade e uma gestão sustentável dos recursos.

Este é um dilema social, tão ao mais complexo que o das alterações climática, para o qual convergem considerações de carácter político, económico, técnico, psicossocial, ético e cultural. Muitos depositam na economia circular a esperança para uma solução prática para a emergente crise de recursos do planeta, mas esta crise não se resolverá apenas com um pacote de metas e alterações legislativas. O envolvimento dos líderes mundiais é fundamental para a alteração dos nossos modelos globais de consumo. Até lá, a economia circular permanecerá no domínio da utopia política e medidas como as anunciadas agora não deixam de ser mais uma recauchutagem da própria economia.

Graça Martinho é doutorada em Engenharia do Ambiente, especialidade sistemas sociais, exerce as funções de subdiretora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e a docência de disciplinas de gestão de resíduos. É membro da Comissão de Acompanhamento para a Gestão dos Resíduos da APA, do Conselho Consultivo da ERSAR, do Conselho de Ambiente e Sustentabilidade da EDP e da Comissão Consultiva de I&D da SPV. Tem vários artigos científicos e livros publicados na temática da gestão de resíduos. A autora escreve, por opção, ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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