Colunista João Tomé Saraiva (Tecnologia): Mercado Diário do MIBEL – Será que ainda existirá em 2029?
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Colunista João Tomé Saraiva (Tecnologia): Mercado Diário do MIBEL – Será que ainda existirá em 2029?

O Mercado Ibérico de Eletricidade, MIBEL, resultou da assinatura de um protocolo de colaboração entre as administrações de Portugal e de Espanha em 14 de novembro de 2001 prevendo-se nessa altura que este mercado tivesse o seu início em 1 de janeiro de 2003.

No entanto, diversas circunstâncias obrigaram ao adiamento dessa data, de tal modo que o MIBEL teve o seu início a 3 de julho de 2006 com o lançamento do OMIP, Polo Português do Mercado Ibérico, responsável pelo mercado a prazo a que se seguiu em 1 de julho de 2007 o OMIE, Polo Espanhol, responsável pelos mercados diário e intradiário. Os mercados diário e intradiário a nível ibérico resultam da extensão das plataformas de negociação correspondentes já existentes em Espanha desde 1998.

A entrada em funcionamento destes mecanismos, nomeadamente o mercado diário, implicou uma alteração profunda do paradigma de planeamento da operação do sistema produtor a curto prazo (horizonte de 24 horas do dia seguinte) uma vez que se passou de uma operação planeada de forma centralizada pela entidade gestora do sistema elétrico, para um planeamento da operação baseado em propostas de compra e de venda, comunicadas pelos agentes participantes ao Operador de Mercado.

De uma situação em que a entidade gestora do sistema detinha informação sobre custos de operação, realizava a previsão de consumos e procedia ao despacho da produção, gerindo os recursos hídricos a longo prazo, passou-se para um novo paradigma em que o Operador de Mercado recebe propostas de venda baseadas em informação detida pelas empresas produtoras, por um lado, e propostas de compra submetidas pelos comercializadores ou consumidores que sejam diretamente agentes do mercado.

De uma forma simplificada, para cada hora do dia seguinte, o Operador de Mercado constrói as curvas agregadas da oferta e da procura e da sua interseção resulta a quantidade transacionada e o preço de mercado. As entidades produtoras podem ainda submeter informação adicional associada a propostas complexas e que podem originar alterações no preço de mercado, em geral no sentido da sua elevação.

O sistema produtor peninsular inclui um mix de tecnologias muito variado incluindo centrais nucleares, térmicas convencionais (a carvão, com desclassificação prevista para a próxima década, e a gás natural), centrais hídricas (a fio de água ou de albufeira, diversas delas com bombagem) bem como muitas unidades utilizando energias renováveis e endógenas, em geral englobadas no que se designa em Portugal por Produção em Regime Especial (por exemplo eólicas, solares e unidades utilizando resíduos urbanos ou florestais).

Esta designação, Regime Especial, resulta do facto destas unidades serem remuneradas por tarifas do tipo feed-in concebidas para induzir investimentos em tecnologias que pudessem apresentar um grau de maturidade ainda reduzido. De forma a realizar o despacho para cada hora do dia seguinte, são realizadas previsões da energia produzida pelas unidades em Regime Especial. Estas previsões são depois incluídas na curva agregada das vendas a preço zero o que se traduz, em geral, por uma redução do preço de mercado.

Tendo em conta os aspetos referidos anteriormente, coloca-se a questão de saber se este mercado funcionando no dia d para planear a operação de cada hora do dia d+1, tal como o conhecemos desde 2007, continuará a existir em 2029, isto é, daqui a 10 anos?

Enumeram-se em seguida alguns aspetos/preocupações que pretendem contribuir para responder a esta questão.

  • Os mercados diários, tal como descritos anteriormente, consideram propostas de venda que deverão refletir os custos marginais de produção de cada tecnologia. O sistema produtor ibérico apresenta um mix de produção muito variado, desde logo incluindo uma percentagem significativa de centrais hídricas. No passado a água era gerida de forma centralizada tendo em conta preocupações a longo prazo bem como mecanismos remuneratórios que permitiam acomodar as variações de proveitos ao longo dos anos. Hoje em dia, a existência de mecanismos de mercado a curto prazo faz temer que a gestão da água a longo prazo seja relegada para segundo plano uma vez que os agentes produtores podem legitimamente privilegiar a obtenção de proveitos mais imediatos;

  • A produção em Regime Especial com algum carácter de volatilidade, como a eólica e a solar fotovoltaica, exige a realização de previsões da sua produção a serem incorporadas na manhã do dia d pelo Operador de Mercado na curva agregada das vendas para cada hora do dia d+1. O intervalo de tempo entre o momento em que são realizadas estas previsões e o momento em que o recurso primário respetivo é convertido em energia elétrica poderá atingir mais de 36 horas (desde a manhã do dia d até à última hora do dia d+1). Este diferencial poderá originar a ocorrência de desvios elevados entre valores estimados e valores realmente ocorridos, determinando a ativação de diversos tipos de reservas com os custos de contratação e mobilização associados;

  • A integração nas curvas agregadas das vendas de cada hora do dia seguinte das previsões de produção em Regime Especial a preço zero de forma a conferir prioridade ao seu despacho tem impacto no preço de mercado. Assim, por exemplo em períodos com elevada produção eólica conjugados com elevada pluviosidade (tipicamente nos meses de março, abril e maio) os preços do mercado diário reduzem-se pelo que as centrais térmicas convencionais são utilizadas de forma pouco intensa;

  • A situação descrita em iii) pode revelar-se problemática por duas razões. Por um lado, o preço de mercado fica mais desacoplado do preço da energia elétrica pago pelos consumidores visto que a produção originária do Regime Especial é remunerada pelas tarifas feed in já mencionadas. Nestas condições, como argumentar junto de um consumidor menos informado da bondade dos mecanismos de mercado, se o preço de mercado tem afinal uma natureza de certa forma virtual, visto que o valor realmente pago pelos consumidores resulta do preço de mercado e das tarifas feed in referidas?

  • Por outro lado, e não descurando a necessidade de utilizar mais intensamente os recursos renováveis, deve referir-se que as centrais térmicas convencionais, nomeadamente a gás natural, são importantes para garantir a segurança de abastecimento uma vez que poderão sobrevir períodos de seca ou em que os recursos eólicos e solares são menos intensos. No entanto, a redução tendencial dos preços de mercado e do número de horas de operação das centrais térmicas poderão contribuir para perigar a rentabilidade destas unidades;

  • Finalmente, os mercados diários existentes nos países Europeus são do tipo simétrico, isto é, têm por base a apresentação de propostas pela produção e pelo consumo. No entanto, esta natureza simétrica tem um caracter mais formal do que real, visto que a procura apresenta ainda uma elasticidade ao preço muito reduzida. Assim e na prática, a curva agregada das compras aproxima-se em muitos casos de uma vertical tornando o mercado muito assimétrico e podendo colocar o consumo numa posição de maior fragilidade.

Tendo em conta todos estes aspetos, a resposta possível à questão incluída no título é a seguinte:

Não, tal como o conhecemos hoje o mercado diário não existirá em 2029.

Poderá ser substituído por mercados intradiários, alargando o âmbito e o número das sessões, e aproximando o momento de apresentação de propostas do momento de entrega física (de modo a reduzir os desvios entre quantidades previstas e realizadas), a carga adquirirá progressivamente uma natureza mais flexível e elástica (com o desenvolvimento das redes inteligentes e da capacidade de gestão de diversos tipos de consumos) e desenvolvendo ações para promover um maior alinhamento entre os preços do mercado diário do MIBEL e as tarifas pagas pelos consumidores (reservando, por exemplo, as tarifas feed in para tecnologias que tenham ainda pouca maturidade).

Trata-se de uma agenda importante e desafiante para os próximos anos, mas que poderá contribuir para transformar os consumidores em agentes mais ativos reaproximando-os do sistema elétrico nacional.   

 

João Tomé Saraiva nasceu no Porto, Portugal, em 1962 e obteve um grau equivalente a MSc, o PhD e o título de Agregado pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto em 1987, 1993 e 2002 onde é atualmente Professor. Integra o INESC TEC desde 1985 onde é Investigador Sénior e colaborou ou foi responsável por diversas atividades no âmbito de projetos financiados pela EU, projetos financiando por entidades nacionais bem diversos contratos de consultoria técnica por exemplo envolvendo a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, a EDP Distribuição, a EDP Produção, a REN, a Empresa de Eletricidade da Madeira, a Empresa de Eletricidade dos Açores e os Operadores do Sistema Elétrico Grego e Brasileiro. Ao longo da sua carreira académica orientou mais de 50 Teses de Mestrado, 10 teses de Doutoramento e foi coautor de 3 livros, de mais de 30 publicações em internacional journals e mais de 120 publicações em conferências internacionais.

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