1. A União Europeia, e Portugal também, anunciaram um novo amanhã para… amanhã: uma transição energética assente no hidrogénio e nas renováveis. Sucede que hoje e amanhã e nos próximos anos o hidrogénio e as restantes renováveis são insuficientes para que a energia fóssil, nomeadamente, o gás natural, deixe de ter um papel charneira. Ainda assim a União Europeia insiste em pôr um fim à utilização de energia fóssil quando determina, por exemplo, que em 2035 serão proibidos carros a combustão. Será esta uma boa estratégia face à dependência que ainda temos destas fontes de energia e ao estádio de desenvolvimento tecnológico em que nos encontramos?
2. Preços de electricidade excessivamente elevados, que penalizam a produção industrial, acompanhada por preços de combustíveis insuportáveis para os consumidores, que não têm alternativa, poderão justificar, cada vez mais, intervenções administrativas nos mercados, como recentemente aconteceu em Portugal? Estará em causa a existência de um mercado livre de energia tal como o conhecemos até aqui? O que podemos esperar?
3. Se o Governo considera existir legitimidade para mexer no preço dos combustíveis fósseis não seria também coerente intervir na margem das centrais hídricas já amortizadas? É que esta renovável está a beneficiar do mecanismo de formação de preço da electricidade existente na Península Ibérica muito para além do que poderá ser considerada uma remuneração justa ou razoável, beneficiando dos elevados custos com licenças de emissão que oneram a produção de gás natural.
4. Até aqui a União Europeia tem-se concentrado, essencialmente, na fixação e calendarização de metas e proibições . Mas, será que com a agitação que se começa a verificar no sector energético, com a subida dos preços, haverá condições para que na próxima Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26) — que será realizada em Glasgow (Reino Unido) no próximo mês de Novembro — as Partes passem das metas às políticas concretas? Ao “como”?
FRANCISCO FERREIRA
Professor da FCT-UNL e Presidente da ZERO
1. É unânime que o combate às alterações climáticas não tem alternativa senão uma enorme redução do recurso a combustíveis fósseis. Mais ainda, o gás natural tem um papel de transição que deve ser limitado, porque investimentos que o suportem ficarão rapidamente obsoletos. O desafio é efetivamente recorrer a energias renováveis e investir muito na eficiência energética e acredito que tal é possível acelerar para assegurar esta desejável substituição.
2. A estrutura de formação do preço no Mercado Ibérico da eletricidade está desatualizada e tem de ser revista mas não da forma conjuntural como se está a ponderar. É inevitável que numa fase de transição onde ainda dependemos fortemente do gás natural, que está a preços elevados a par do elevado custo das emissões de dióxido de carbono, os preços sejam muito elevados. No médio prazo, as renováveis tenderão a ser o motor da redução destes preços.
3. É sempre complicado alterar as regras do jogo a meio do jogo mas efetivamente as centrais hídricas não estão apenas a ter margens excessivas como a gerir os rios sem a necessidade de cumprir devidamente os caudais ecológicos, quer em Portugal, quer em Espanha. Neste contexto, é fundamental uma tradução destes lucros excessivos, por exemplo, em benefícios para as regiões em que se inserem ou através da redução dessas mesmas margens.
4. É preciso fixar metas que incluem incentivos e proibições para depois os diferentes pacotes legislativos serem aplicados através de políticas com medidas concretas e é isso que a União Europeia já está a fazer no quadro do Pacto Ecológico Europeu que inclui toda a vertente de energia, clima e mobilidade, abrangendo também novas regras para o mercado europeu de emissões.
MÁRIO PAULO
Presidente do Conselho Consultivo da ERSE
1. O governo português definiu como um dos eixos da política energética para a descarbonização, o conceito de gases renováveis e a eletricidade. Dentro dos gases renováveis inclui-se o gás natural com um mix de hidrogénio que poderá ir até aos 15%. O fim dos carros a combustão dependerá da evolução das baterias. As redes elétricas terão de continuar a sua adaptação à mobilidade elétrica nos próximos 15 anos.
2. O mercado livre de energia irá manter-se. Porém, foi criado há 23 anos quando os combustíveis fósseis representavam 70% do mix energético. A situação inverteu-se: temos agora 65% de energia renovável. Teremos que redesenhar o mercado evitando que o custo do CO2 aumente de forma indevida o lucro da eletricidade produzida por fontes energéticas sem emissões de CO2.
3. O governo espanhol vai utilizar a via fiscal para retirar o lucro indevido às centrais hídricas amortizadas e nucleares. Já antes tinha reduzido o IVA em 7%. O Mercado Ibérico de Eletricidade foi organizado com o princípio de “leis espelho”, visando garantir a igualdade aos consumidores de ambos os países. O governo português irá equacionar a melhor forma de aplicar essa simetria visando a defesa dos consumidores portugueses.
4. A humanidade precisa de um acordo global, nenhum país ou continente isolado consegue travar as alterações climáticas. Temos tecnologia e conhecimentos para mitigar as externalidades negativas. Porém, esta transição energética necessita de enormes financiamentos, investigação, alteração de comportamentos e terá ganhadores e perdedores. A evidência de que ninguém está a salvo vai ajudar a traçar bissetrizes e chegar a um acordo.
JAIME BRAGA
Assessor da Direção da CIP
1. A evidência das recentes catástrofes e eventos extremos por todo o mundo, cria uma pressão excessiva sobre os decisores políticos e sobre a opinião pública. A pressa é má conselheira; as opções políticas sobre alternativas apresentadas pelo progresso técnico não deveriam pôr em causa a neutralidade tecnológica. A estratégia pode ser aceitável nalguns casos; no caso de países com economia mais débil, a estratégia tem claros custos sociais.
2. O que está a acontecer deveria ter sido acautelado pelos decisores políticos que, sistematicamente, apregoam que as renováveis reduzem a prazo os preços da energia. As regras deste mercado foram estabelecidas noutro tempo; quem defende uma economia de mercado deve adaptá-las com urgência, sob pena de o destruir, provocando o aparecimento de novas realidades seguramente menos amigas dos cidadãos e das empresas.
3. Em Portugal, a maximização da receita fiscal nos combustíveis, sempre se valeu da falta de transparência na cobrança desses impostos. É fixado o ISP; a taxa de carbono é conhecida, mas não é separada do ISP, sendo tratada como um “adicional”; sobre essa amálgama incide o IVA, imposto sobre impostos. Não admira que, neste “ambiente”, as centrais hídricas possam ser remuneradas com inclusão de uma taxa de carbono que lhes é alheia. A “doença” alastra; o Governo tem de tratar da cura.
4. Haverá, certamente, alguns avanços. A situação climática é desfavorável, o acervo de dados e de observações é cada vez mais consistente, as catástrofes naturais sucedem-se. Mas, e isto é uma opinião pessoal, os interesses deverão, ainda desta vez, sobreporse à perspetiva desejável de uma atuação ao nível global.
PAULO PRETO DOS SANTOS
Vice Coordenador da Comissão de Energia da Ordem dos Engenheiros
1. Em energia, qualquer estratégia que seja desenhada com um único caminho pode revelar-se num erro. E a proibição dos motores de combustão interna (ICE) é um desses casos. O enorme parque existente de ICE pode contribuir para uma mais rápida descarbonização com a utilização dos e-fuels, sendo estes, compostos a partir do hidrogénio verde (não do azul). Nessas condições as emissões de CO2 serão nulas! Se formos pelo caminho único do 100% elétrico, a descarbonização será bem mais lenta e obrigará a uma gigantesca fabricação de novos meios de transporte gerando mais CO2, mais mineração e mais resíduos. O novo paradigma ambiental é recuperar e não substituir por novo. E a obsolescência programada deveria passar a ser considerada crime ambiental.
2. As indústrias químicas, do aço, do vidro e da cerâmica e até as da manufatura não vão poder aguentar, face à concorrência do exterior europeu que não tem o peso da taxação do CO2, que está já neste momento acima de 60 €/ Ton. Na atual construção do mercado elétrico quem vai ganhar serão as grandes operadoras deste mercado, nomeadamente as que possuam ativos de geração de vários tipos (fósseis e não fósseis, com e sem bombagem hídrica, térmicos e não térmicos). Os consumidores serão os que vão perder. Há 20 anos que os consumidores aguardam o que lhes foi prometido — que o custo da energia iria baixar com as renováveis.
3. As indústrias químicas, do aço, do vidro e da cerâmica e até as da manufatura não vão poder aguentar, face à concorrência do exterior europeu que não tem o peso da taxação do CO2, que está já neste momento acima de 60 €/ Ton. Na atual construção do mercado elétrico quem vai ganhar serão as grandes operadoras deste mercado, nomeadamente as que possuam ativos de geração de vários tipos (fósseis e não fósseis, com e sem bombagem hídrica, térmicos e não térmicos). Os consumidores serão os que vão perder. Há 20 anos que os consumidores aguardam o que lhes foi prometido — que o custo da energia iria baixar com as renováveis.
4. Mais importante do que vier a ser decidido na COP26, é o cumprimento das decisões das anteriores.
SALVADOR MALHEIRO
Presidente da Câmara de Ovar
1. A UE tem as metas mais ambiciosas a nível mundial. Mas, pretende reduzir as emissões de GEE em 2020 para apenas 55% em relação aos níveis de 1990 e a atingir a neutralidade carbónica só em 2050! Isto já resulta de um compromisso entre o Clima e Economia que mereceu amplo consenso entre as instituições europeias – não podemos estar reféns de uma escolha entre catástrofes ambientais e sociais, quando sabemos que são os mais vulneráveis os que mais sofrem num processo incontrolável de mudança climática e societal.
2. O Estado tem um papel incontornável no setor energético. Contudo, reservar ao Estado o papel de árbitro, através das suas instituições, e jogador, é um erro porque limita de sobremaneira a capacidade de intervenção da sociedade civil, das empresas, das pessoas. O Estado deve antes ser o garante de um ecossistema onde a competitividade da energia e a transição energética se apoiem, fazendo incidir as responsabilidades sobre todos os atores envolvidos, desde a oferta até à procura.
3. Infelizmente não existe coerência na política energética do governo, que oscila entre virtudes excessivas do mercado (vide leilões solares sem garantias de execução ou da qualidade dos projetos) e a imposição de margens (vide combustíveis, descurando a neutralidade fiscal anunciada). De qualquer modo, trata-se de uma questão pertinente mas que não se trata com uma abordagem de pensos rápidos, i.e., de um “vamos agora tratar desta questão das barragens”. O tema é muito mais profundo.
4. Creio que a UE tem trabalhado em ferramentas muito concretas: o Sistema de Comércio de Licenças de Emissão da EU é, talvez, o mais conhecido. Mas outros há que serão muito importantes: o regulamento da taxonomia que condicionará imenso a Banca de Investimento, as obrigações do setor financeiro e corporativo em termos de Sustentabilidade ou o Mecanismo de Ajustamento Carbónico na Fronteira. A grande questão é se estes mecanismos serão o suficiente. Ainda assim, temos de dar um passo de cada vez.
JOÃO BELO
Diretor do jornal Água&Ambiente
EM CONCLUSÃO…
“Revolução” é uma palavra muitas vezes mal aplicada. Traídos pela necessidade de descrever uma qualquer mudança, lá nos surge a palavra “revolução”, mas quase sempre ou muitas vezes utilizamo-la despropositadamente. Vem isto a propósito da Transição Energética porque, neste caso, estamos mesmo perante uma verdadeira revolução, capaz de muitos efeitos colaterais e nem todos desejáveis.
As metas impõem-se por força das catástrofes naturais. A cada uma que sucede, hoje a um ritmo vertiginoso, mais pressão. E com a pressão, o perigo de se pôr em causa uma transição justa. Haverá tempo para uma transição justa ou a transição terá de ser cega?
Primeiro, o impacto dos problemas concretos que nos batem à porta e que exigem resposta. O preço da electricidade que parece não parar de subir. Claro que, assim, há motivos para recear que nem tudo na Transição Energética esteja a ser devidamente ponderado.
Depois há os equívocos. Prometeram que a energia renovável tornaria a eletricidade mais acessível. Não o fez, mas ficamos a saber que se não fossem as renováveis existentes a electricidade seria mais cara. Mais ainda? Algo parece estar errado. As regras deste mercado “são de outro tempo”. Mas, se assim é, refaçam-se as regras e os pressupostos que fazem do preço da eletricidade, essencial para tudo, nem transparente nem acessível.
E depois há os absurdos que são difíceis de entender. Como é que as barragens podem beneficiar com o preço da electricidade que reflecte o custo de emissões que elas não pagam? Um prémio indireto? Em benefício de quem? Não seria de aproveitar esta “almofada”? Se assim fosse seria mais fácil aceitar a Transição Energética: uma alteração profunda de todos os modelos do passado.
Tudo tem de ser melhor ponderado e mais refletido e seguramente esse processo já se iniciou. A União Europeia, o grande bloco que, sem hesitações e para espanto de muitos interesses, tem levado às costas a Transição Energética não estará indiferente aos primeiros sinais de desestabilização.
É neste contexto geral que a intervenção do Estado, mesmo que possa parecer casuística ou até mesmo que o seja, parece ser necessária. Num sector em revolução fazer cara de paisagem é caminho seguro para a desgraça. Venham as “almofadas”.