Paulo Praça: O ano de 2020 no setor dos resíduos urbanos

Paulo Praça: O ano de 2020 no setor dos resíduos urbanos

Antes de mais um Bom Ano para Todos.

Em final de ano ou início de outro é habitual fazer um balanço das atividades.

2020, pelos motivos que todos conhecemos, foi um ano extremamente difícil, se não dos mais difíceis de que há memória, e por isso também, o setor dos resíduos urbanos (RU) não é exceção.

No caso dos RU também, mas não só. Não só porque para além das dificuldades que resultaram da crise sanitária, como foi o caso da paragem de algumas instalações, a deposição direta em aterro de resíduos e o aumento substancial de custos, mas também porque o setor vive, desde há alguns anos para cá, num contexto de elevada complexidade e atualmente de alguma conflitualidade até, decorrente não só da existência de um enquadramento legal extremamente complexo e confuso, que permite diferentes e inconsequentes aplicações pelos diferentes agentes, mas ainda pela ausência de uma política de gestão de resíduos adequada à realidade do país e aos problemas específicos que enfrenta.

Por mais que tente, é muito difícil encontrar uma explicação para que o Governo tenha escolhido precisamente 2020 para decidir aumentar a taxa de gestão de resíduos (TGR) para o dobro, sem que se conheça sequer o racional do valor do aumento num dos momentos mais difíceis e exigentes para os setores de atividade que prestam serviços de interesse público, como é o caso também da gestão de RU. Setor este que desenvolveu todos os esforços e recorreu a todos os meios ao seu dispor para combater a crise sanitária, através da adoção de um conjunto de medidas que, entre outras, implicaram a suspensão de algumas operações de tratamento e a deposição direta em aterro. A este cenário acresce o aumento substancial e inegável do consumo de descartáveis que, não podendo ser objeto de valorização, não têm outro caminho se não o aterro. Sendo reconhecido que em Portugal os valores atuais não são elevados e que a TGR precisava de ser revista, a verdade também é que por si só o seu aumento apenas a agrava situação dos municípios e por conseguinte dos cidadãos, no pior contexto possível, em que os municípios estão assoberbados na resposta social à crise, sem que se tenham introduzido outros instrumentos ou medidas que constituam verdadeiras alternativas ao estado atual da situação de deposição muito elevada em aterro. Desde a criação da TGR pouco ou nada das receitas arrecadadas no setor de gestão de resíduos foram direcionadas para investimento no sistema de gestão de resíduos urbanos (SGRU), pelo que menos se compreende que uma medida justificada por razões ambientais apenas incida num único aspeto, a tributação de receita para o Estado, no caso para o Fundo Ambiental.

Nos últimos anos o setor tem enfrentado constrangimentos complexos, muitos efetivamente decorrentes da falta de clareza e estabilidade do quadro regulamentar, que permitiram interpretações variáveis ao longo do tempo trazendo uma situação de enorme instabilidade e um ambiente de falta de confiança pouco propício ao desempenho de qualquer atividade. Posto isto, era com enorme expectativa que se aguardava a revisão do regime jurídico aplicável ao setor da gestão de resíduos, na esperança de ser um processo participado e uma oportunidade de melhoria e de resolução de alguns problemas que se arrastam há tempo o suficiente para serem ilustrativos da necessidade de mudança.

Sucede que este processo, a nosso ver, não foi participado como era desejado e aconselhável, nem tão pouco veio introduzir as necessárias clarificações.

Um dos casos paradigmáticos é uma questão basilar sobre uma questão que devia ser clara e consensual, mas não só as últimas alterações legislativas vieram introduzir a maior das confusões, como em termos de percetibilidade o novo regime geral de resíduos urbanos bateu no fundo. É quase caso para dizer que se oferece recompensa a quem, na gestão operacional, conseguir aplicar o conceito de RU constante do diploma recentemente aprovado.

O ano de 2020 foi também crítico para a definição do regime aplicável à remuneração da energia produzida a partir de resíduos, em que ignorando os diversos apelos e diferentes propostas de soluções, o Governo veio a definir uma solução que não é nem equitativa nem estrutural, na medida em que apenas considera uma parte do setor. Sobre esta matéria o Governo optou por uma medida que não só ameaça a sustentabilidade dos SGRU, como vem criar desigualdades de tratamento por parte do próprio Estado entre as entidades do sistema, ademais através do recurso a verbas do Fundo Ambiental desvirtuando os seus próprios fins.

Apesar de haver obra feita, e bem-feita, a verdade é que urge a mudança, mas para melhorar, para estabelecer caminhos que a médio longo prazo sejam sustentáveis mas eficazes para responder aos problemas reais que temos hoje, através da necessidade de políticas e medidas claras e mobilizadoras capazes da mudança, e esse não parece ser o rumo que está a ser preconizado, bastando para confirmar esta constatação, deter-nos  sobre o exemplo dos países da União Europeia onde as taxas de reciclagem são mais elevadas e a deposição em aterro mais baixa, que são precisamente os países onde se investiu e continua a investir na valorização energética de resíduos. A verdade é que em Portugal se criou um verdadeiro tabu em torno da valorização energética que não deve constituir a principal solução e muito menos a única, mas com pragmatismo e admitindo-se como parte da resposta ao problema nacional de quase 60% de deposição de resíduos em aterro, quando em poucos anos teremos de atingir uma meta de 10% da deposição total de resíduos em aterro.

Apesar das dificuldades, desde a sua criação que a ESGRA – Associação para a Gestão de Resíduos, entre outras entidades, tem procurado contribuir para a melhoria do setor e é com o mesmo espírito que continuamos a acreditar que a solução terá de ser conseguida a partir do esforço de todos os stakeholders, mas também dos decisores políticos e da sociedade, de modo a alcançar um futuro mais auspicioso e de maior confiança que naturalmente todos desejamos e o país e o planeta agradecem.

Paulo Praça é licenciado em Direito com pós-graduações em Direito Industrial, Direito da Interioridade e Direito das Autarquias Locais. Título de Especialista em Solicitadoria. É Diretor-Geral da Resíduos do Nordeste e Presidente da Direção da ESGRA – Associação de Empresas Gestoras de Sistemas de Resíduos. 

Docente convidado na Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo do Instituto Politécnico de Bragança, no Mestrado de Administração Autárquica e na Licenciatura de Solicitadora, nas matérias de Ordenamento, Urbanismo e Ambiente.

Foi Adjunto da Secretária de Estado Adjunta do Ministro da Economia, no XV Governo Constitucional, Assessor do(s) Ministro(s) da Economia e do Ministro das Finanças e da Economia, no XIV Governo Constitucional, e Assessor do Ministro da Economia, no XIII Governo Constitucional.

Nos últimos anos tem participado em diversas ações de formação como orador e como participante. É também autor de trabalhos publicados.

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