
Armazenamento sazonal de energia no sistema elétrico Português
Para atingirmos as metas definidas pelo RNC para 2050, relativas à descarbonização da economia de Portugal, terá que ser desenvolvido um esforço importante a nível do sistema electroprodutor no sentido da sua neutralidade carbónica. Tal implica desde já que em 2030, 80% do consumo de eletricidade seja assegurado por fontes de energia renovável. Este um desígnio sobre o qual não pode haver hesitações.
O recurso a fontes de energia renovável (hidroeletricidade, energia eólica, energia solar fotovoltaica) conduz a problemas para a exploração e planeamento do sistema elétrico, que resultam da variabilidade temporal destas fontes de energia. Em particular é necessário dispor de potência firme para satisfazer a procura quando existirem condições adversas associadas à existência de anos secos, portanto com reduzidas afluências de água às bacias hidrográficas, em simultâneo com períodos de menor abundância de vento e reduzida insolação solar associada aos invernos. A necessidade do recurso a centrais térmicas de ciclo combinado a gás natural será uma realidade durante os próximos anos por forma garantir a tal potência firme com a flexibilidade necessária para se adaptar a variabilidade da produção de origem renovável.
A realização de estudos de fiabilidade relativos à adequação do sistema electroprodutor de Portugal para 2030 em diante revela a necessidade de reforço de potência firme, para além da potência instalada em unidades de ciclo combinado que existem atualmente. Só assim será possível garantir um LOLE (Loss of Load Expectation) inferior a 5 h/ ano, valor recomendado a nível internacional. Pelo menos uma parte desta potência firme necessita rapidamente de mecanismos de remuneração por capacidade, uma vez que o seu fator de utilização será cada vez mais reduzido e importa ainda evitar períodos de grande volatilidade de preços.
Face a este cenário de necessidade de potência firme para garantir a segurança de abastecimento, importa tentar identificar soluções para continuar a descarbonizar o sistema electroprodutor nas próximas décadas.
As opções são poucas. Ou se continua a explorar as unidades de ciclo combinado a gás natural e se faz o sequestro do carbono sobre as emissões destas centrais, sendo ainda necessário depois pensar como se armazena o carbono que daí resultar. Ou se recorre ao armazenamento dos excessos de eletricidade renovável e se utiliza essa energia armazenada para disponibilizar a referida potência firme.
Ocorre que face à evolução do portfolio de geração previsto para Portugal, caraterizado por um forte investimento em centrais renováveis, para assim satisfazer uma crescente evolução da procura de eletricidade, é expetável virem a ocorrer excessos de produção renovável significativos.
Isto mesmo que se faça a modulação da procura, deslocando consumos associados por exemplo à mobilidade elétrica e cargas térmicas. Estes excessos terão sempre lugar e serão significativos, em particular na Primavera devido a maiores afluências hídricas e velocidades de vento mais elevados e no Verão devido a maiores níveis de insolação durante o dia. Importa assim, em vez de se perder a energia excedentária, armazenar esta energia de origem renovável para ser disponibilizada ao sistema nos momentos em que for necessária a potência firme, tipicamente e de forma mais frequente no Outono e no Inverno. Estas necessidades de armazenamento de energia estão assim associadas a um conceito de armazenamento sazonal, que envolve a transferência de energia armazenada entre períodos do ano. As centrais hidroelétricas reversíveis serão utilizadas para transferências de energia dentro de janelas de operação diárias ou semanais, mas não terão capacidade de armazenamento dentro de uma lógica de sazonalidade. Aliás a construção de centrais hidroelétricas com esta capacidade teria impactos ambientais significativos associados à grande extensão das superfícies inundadas.
O armazenamento sazonal de energia descrito pode então ser realizado com recurso ao hidrogénio produzido a partir da eletrólise da água, utilizando os excedentes de eletricidade renovável já referidos. Este hidrogénio terá que ser armazenado, havendo em Portugal condições geológicas excecionais para o seu armazenamento em cavernas a sul da Figueira da Foz. Aliás essa exploração já é feita atualmente em Portugal para o gás natural. Este hidrogénio pode depois alimentar células de combustível ou turbinas a gás convenientemente adaptadas, garantindo-se assim a potência firme e uma energia de origem renovável firme necessária para a segurança de abastecimento.
A opção “power to gas + gas to power” que se descreve necessita de ser aprofundada face aos vários problemas técnicos e económicos que lhe estão associados e que envolvem o baixo rendimento do processo, a necessidade da otimização dos investimentos face às caraterísticas dos recursos renováveis e a necessidade de um enquadramento regulatório adequado. O desenvolvimento de uma solução deste tipo pode contribuir significativamente para atingir as necessárias metas de descarbonização definidas para as próximas décadas, para além de poder trazer mais valias económicas a nível industrial que podem aumentar o potencial de exportação de tecnologia e know-how nestes domínios para a indústria Portuguesa. O sistema científico e tecnológico está desde já empenhado em trabalhar este assunto.
João Peças Lopes é diretor associado do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) e Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. É doutorado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores e foi responsável por dezenas de projetos nacionais ou europeus nesta área, tais como a definição de especificações técnicas para a integração de energia eólica no Brasil. É vice-presidente da Associação Portuguesa de Veículos Elétricos.