As Comunidades energéticas como elemento “User Centric” do setor elétrico
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As Comunidades energéticas como elemento “User Centric” do setor elétrico

Juntos somos mais fortes. O associativismo é das capacidades mais ilustres das sociedades ao longo dos tempos. A dimensão coletiva, é premissa chave para se almejar um desígnio maior, mais justo e duradouro. A capacidade dos seres humanos de se organizarem livremente em torno de um interesse comum promove, incentiva e concretiza, com ajuste fino, as pretensões de grandes feitos. A descentralizacão de vários setores que se verificam nos últimos anos, quer seja na geração de eletricidade, no setor financeiro e informação com o surgimento dos blockchains, no formato AIRBnB na hospedagem, ou nos serviços de mobilidade ou entregas como a Uber, são apenas alguns exemplos, em como as sociedades modernas têm vindo a amadurecer. Este amadurecimento advém das regras de livre mercado e democratização dos setores. Seria inevitável que várias perspectivas desta descentralização chegassem aos consumidores. As comunidades de energia (CE) são consequência de tal facto. Estas podem ser categorizadas em dois tipos: comunidades energéticas de cidadãos (CEC), ou comunidades energéticas renováveis (CER), e são definidas pela sua estrutura. Ambas devem ser efetivamente controladas pelos seus acionistas ou membros, e o seu principal objetivo é prover benefícios ambientais, económicos e sociais à comunidade, em vez de lucros financeiros. Embora semelhantes na sua natureza, há uma série de diferenças na definição de comunidades de energia de cidadãos e renovável que interessa realçar.

 

Relativamente à composição, ambas podem incluir pessoas naturais, entidades locais como municipalidades ou pequenas e microempresas, sendo que no caso das CER, para empresas, esta não é a sua fonte principal de atividade e rendimento. No que toca à limitação geográfica, nas CEC, não há qualquer limitação, sendo que, os estados-membro na União Europeia poderão até possibilitar comunidades entre Estados. O mesmo não acontece nas CER, onde os seus membros devem estar localizados nas proximidades dos ativos renováveis detidos pela comunidade. Quanto às atividades que são permitidas, no caso das CEC estão limitadas às do setor elétrico (geração, distribuição, consumo, agregação, armazenamento ou serviços de eficiencia energética e carregamento de veículos elétricos). Para as CER, o âmbito é mais alargado, sendo que pode ser ativa em todo o setor energético, produção, consumo e venda de energia revovável. No que toca à componente tecnólogica, as CEC são tecnologicamente agnósticas e neutras, ao invés das CER que estão limitadas a tecnologias de energia renovável.

 

A nível europeu as comunidades de energia ficaram sob foco na sequência da publicação de ambas as regulações e diretivas para o mercado elétrico (EU) 2019/443 e 444, no tão antecipado Clean Energy Package. A nível nacional, o Decreto-Lei n.º 162/2019, em vigor desde o dia 1 de janeiro de 2020, estabelece o regime jurídico aplicável ao autoconsumo de energia renovável, a nível individual, coletivo e por comunidades de energia renovável complementado já em 2021, com regras esclarecidas pela ERSE.

 

É com expectativa que se aguarda para breve nova legislação sobre o sistema elétrico nacional, que promete trazer novidades e inovações ao nível do autoconsumo de eletricidade (individual e coletivo) e das comunidades de energia. A possibilidade de aprender com outros estados-membro é uma oportunidade de replicar melhores práticas, complementar, e fazer melhor. A clarividência e ambição das novas regras devem, pois, ser holísticas, ter uma perspectiva de política pública horizontal, compreendendo o alcance da competitividade e envolver os clusters energéticos associados, que daí podem emergir.

 

As CE têm um potencial enorme para trazer uma nova dinâmica aos mercados. Contudo, deve acautelar-se o perigo de subversão dos princípios de mercado existentes, como de unbundling, os direitos do consumidor ou os princípios de repartição de custos aplicados às redes de energia.

 

Várias recomendações foram dadas aos estados-membro da UE, a fim de garantir que áreas importantes do quadro regulatório sejam suficientemente abordadas. Entre elas incluem:


1.  Direitos do consumidor – Os membros de comunidades energéticas devem manter os mesmos direitos de qualquer outro consumidor (por exemplo, o de trocar de fornecedor para garantir a qualidade do serviço e a certeza contratual).


2. Equilíbrio e flexibilidade – As comunidades de energia devem ser capazes de aumentar o potencial de flexibilidade dos clientes e, portanto, integrar de forma mais eficaz energias renováveis e novas tecnologias, por exemplo, os veículos elétricos na rede. Um design de mercado eficaz é essencial para garantir que isto reduza os custos de sistema.


3. Modelo de negócio e design de mercado – O consumo local ainda deve responder a sinais eficazes de preço de mercado, incluindo negociação no contexto de zonas de licitação de tamanho otimizado.


4. Propriedade, operação e desenvolvimento de rede – As comunidades de energia que possuem infraestrutura de rede permanecem opcionais. No entanto, se e onde essa abordagem for adotada, devem evitar-se a duplicação de ativos, garantir a eficiência económica, estar sujeito à regulação adequada em consonância com as regras dos DSOs e garantir a qualidade do serviço e da oferta.

Esta dinâmica remete para o operador de rede a responsabilidade de assegurar o bom funcionamento do sistema, garantindo sempre a segurança de abastecimento, a qualidade e, em conjunto com o regulador, o livre acesso aos mercados.

 

Muitas iniciativas estão a ser propostas em todo o país para formação de comunidades de energia, e uma delas na cidade do Porto, promete mesmo ser a primeira. No âmbito do projeto Asprela + Sustentavel, pretende criar-se o km2 mais sustentável da Europa. O espaço geográfico até agora conhecido por pertencer ao top europeu de maior concentração e geração de conhecimento, quer ambicionar a mais. Liderado pela Coopernico e tendo como parceiros chave nomes, como por exemplo, o INESCTEC e a AdePorto, aspira a criar a Comunidade de Energia da Asprela. Aspetos de governance, nível de dispersão, ou quão longe podem estar os ativos pertencentes à comunidade, são alguns pontos que importa esclarecer. Muitos tópicos serão abordados no projeto, desde a pobreza energética, o binómio energia-água, eficiência energética ou a mobilidade sustentável.

 

Para além das comunidades de energía, a diretiva Europeia, foca também o papel dos Agregadores. Uma relalidade ainda por amadurecer em Portugal, tal como as CE, e que poderá abrir a porta aos mercados de flexibilidade, como forma de mitigar problemas locais como congestionamentos da rede ou controlo de tensão. Tais atores possibilitarão a participação de recursos flexíveis mais reduzidos que, por si só, não teriam capacidade de participar em tais mercados. Também por esta perspectiva descentralizada se vê enaltecida a participação do cidadão.

 

Outro exemplo de recurso nas mãos dos utilizadores, e que deve ser integrado com a rede, são os veículos elétricos (VE), cuja integração no projeto Asprela + Sustetável é um foco no tema da mobilidade. Renova-se na comunidade científica e programas de apoio à investigação a temática V2X incorporando todos os serviços que um VE é capaz de fornecer para a rede, mas muito mais do que isso, o V4G. Até agora os VEs eram principalmente vistos como instrumentos úteis para aumentar a penetração renovável o que, através de tarifas alvo, poderia promover a alteração do consumo de horas cheias, para horas de vazio onde o consumo versus geração poderia ser mais consonante. Contudo, ganha corpo a ideia de que os VEs têm um potencial bem mais alargado. Estes são chave não só para uma mobilidade mais sustentável, mas também para o impulso que faltava aos mercados locais de flexibilidade. Até agora, uma das críticas apontadas a este tipo de mercados era a de ter potencialmente pouca liquidez/volume local, dada a natureza requerida descentralizada dos recursos. Os VEs, assim como as CE e a sua correspondente infraestrutura naturalmente dispersa, apresentam uma oportunidade única para o desenvolvimento destes mercados de flexibilidade. É tambem uma oportunidade para os tornarem (os mercados) europeus. Os veículos e carregadores, apoiados por plataformas de roaming e outras tecnologias, dependendo do modelo de negócio, poderão carregar o VE, mas também fornecer servicos à rede em qualquer estado membro, sem que a compensação pelo serviço seja um entrave. A infrastrutura de carregamento quer seja privada, pública, restrita, ou pertencente a comunidades energéticas, deverá estar dotada de tal capacidade. Há já hoje, para toda a cadeia de valor ao nivel da infrastrutura, soluções claras e de tecnologia nacional. São vários os players industriais de pequenas e grandes empresas nacionais que testam e aplicam soluções de software e hardware para V2G/V4G.

 

Desde os primeiros pacotes legislativos europeus para a energia, que o cidadão é invocado para o centro de um setor que era tanto remoto para o utilizador, como a sua centralização. Por entre unbundllings e descentralizações, terão mesmo as comunidades energéticas, o potencial de dar o empurrão necessário à democratização da energia pelas mãos dos cidadãos? O palco está montado e os atores apresentados. Esta pode ser uma oportunidade imensa para novos negócios e interações. É necessário um quadro legislativo claro e regras transparentes para um arranque convicto com todo o seu potencial. O desvendar do setor nos próximos anos terá assim, a distinção da perspectiva de um associativismo em série, onde toda a cadeia de valor contribui, num círculo virtuoso em proveito próprio...

 

Alexandre Lucas é investigador sénior no Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC). Trabalhou anteriormente como investigador na Commissão Europeia no suporte técnico ao desenvolvimento de politicas publicas na area de smart grids e no setor privado na EFACEC, como Gestor de projetos de subestações para a rede transporte e distribuição em mercados internacionais. É doutorado em Sistemas Sustentaveis de Energia e tem participado em diversos projetos europeus de investigação nas areas de demand response, smart grids e veiculos eletricos.

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