
Biometano em Portugal: licenciamento, regulação e metas obrigatórias são travões à criação do mercado
A necessidade de simplificar o licenciamento, definir um enquadramento regulatório claro e estabelecer metas obrigatórias para o uso de biometano foram algumas das principais conclusões do painel “Criar o mercado do biometano: lições de fora”, do 3.º Fórum Biorresíduos, que se realizou a 5 de junho, no Porto. Esta constatação unânime entre os oradores revela a urgência em remover entraves estruturais que impedem Portugal de tirar partido de um potencial energético já explorado com sucesso noutros países europeus.
O painel foi moderado por Jaime Braga, Assessor da Direção da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), e contou com a intervenção inicial de Flávio Ascenco, Líder Técnico Sénior da Associação Mundial de Biogás, seguida de um debate com representantes de entidades ligadas à energia e à gestão de resíduos: Nuno Afonso Moreira, CEO da Dourogás SGPS, Inês Baeta Neves, Diretora de Inovação e Desenvolvimento da EGF, Benedita Chaves, Diretora do Departamento de Inovação, Investigação e Desenvolvimento da LIPOR, e Nuno Soares, Presidente do Conselho de Administração da Tratolixo.
Não vai haver net zero sem biogás
Flávio Ascenco apresentou um panorama global onde o biometano já é peça-chave na transição energética em países como a Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Dinamarca. Neste último, o biometano já representa 35% do gás injetado na rede. A Irlanda, por sua vez, lançou uma estratégia nacional que prevê subsídios de 20% até um máximo de cinco milhões de euros. Itália foi mais longe, com apoios até 40% do custo de investimento através do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) europeu.
Flávio Ascenco destacou ainda o caso britânico, onde a parceria entre a Future Biogas e a farmacêutica AstraZeneca permitiu criar uma instalação de produção sem qualquer apoio público: “Este biometano será fornecido diretamente a todas as unidades da AstraZeneca do Reino Unido usando o meio da rede nacional de gás”. A viabilidade foi assegurada por via dos elevados custos de emissões carbónicas que a empresa evita, criando uma vantagem competitiva no mercado.
Segundo o responsável, estas abordagens demonstram que a digestão anaeróbica deve ser reconhecida como método prioritário para a gestão de resíduos orgânicos. Políticas consistentes e de longo prazo, aliadas a certificações e modelos económicos viáveis, são essenciais: “Não vai haver net zero sem biogás”, afirmou.
Nuno Afonso Moreira: importamos 250 GWh de biometano
Nuno Afonso Moreira foi perentório ao afirmar: “A Dourogás importa cerca de 250 GWh de biometano”. Este volume corresponde a cerca de 25 mil toneladas, representando já 2% a 3% da mobilidade pesada em Portugal. O biometano é integralmente injetado no abastecimento de camiões, comprando-se diretamente no mercado europeu.
Apesar disso, o CEO da Dourogás expressou vontade clara de adquirir biometano nacional: “Desejaríamos muito estar a comprar em Portugal em vez de estar a importar”, realçou. Para que tal se concretize, é preciso desbloquear investimentos locais. “Não há falta de dinheiro, porque em Portugal existe um imposto sobre o carbono que coleta mais de 100 milhões de euros por ano aos clientes de gás. Esse dinheiro deveria servir para potenciar o biometano e descarbonizar as redes de gás. E não é dinheiro dos contribuintes. É dinheiro dos clientes de gás em Portugal”, defendeu.
O gestor criticou ainda a falta de execução do Plano de Ação para o Biometano, alertando que “as condições nos outros países são perfeitamente conhecidas” e que “não há que inventar nada”.
Inês Baeta Neves: o plano existe, mas falta fazer
Para Inês Baeta Neves, da EGF, o impasse no desenvolvimento deste mercado prende-se com a ausência de incentivos e com um modelo tarifário que penaliza os investimentos: “Estamos a falar de investimentos elevados para fazer novas digestões anaeróbicas e que, obviamente, fazem subir as tarifas municipais”.
A responsável reforçou que “os resíduos orgânicos não faltam”, mas alertou para um entrave relevante: “Há barreiras legais que impedem a partilha de instalações entre o setor dos resíduos urbanos e dos não urbanos”. Esta limitação torna ineficiente o aproveitamento das sinergias territoriais e do potencial de escala.
Além dos custos elevados de investimento, a operacionalização da digestão anaeróbica enfrenta desafios técnicos significativos, desde o pré-tratamento dos resíduos até à gestão dos contaminantes e do digerido. A recolha seletiva está longe de ser “limpa” e exige um esforço acrescido no tratamento para garantir a qualidade do processo e do produto final.
Benedita Chaves: cinco anos a tentar arrancar
Benedita Chaves descreveu a tentativa frustrada de instalar uma unidade de digestão anaeróbica para 65 mil toneladas de resíduos alimentares por ano: “Já lá vão 5 anos” sem conseguir avançar, devido à complexidade do processo.
A Diretora do Departamento de Inovação, Investigação e Desenvolvimento da LIPOR chamou a atenção para o modelo europeu de partilha de infraestruturas entre setores — resíduos urbanos, agrícolas e agroindustriais — com destaque para a valorização de digeridos e óleos e um enquadramento legal favorável ao uso agrícola desses subprodutos. “Na Europa, usam muito os óleos nestas unidades de digestão anaeróbica, que aumentam bastante o potencial de produção de biogás”.
Sublinhou ainda a diferença nos modelos de financiamento: “Na Europa há gate fee. Toda a gente aceita que é preciso pagar pelos resíduos que o próprio produz e isso facilita bastante o investimento nestas instalações”.
Sem incentivos, o mercado não nasce
Nuno Soares foi assertivo: “Considero que é absolutamente imprescindível que existam apoios e incentivos para que o mercado arranque. Porque senão ele não vai arrancar”.
O Presidente do Conselho de Administração da Tratolixo identificou três entraves principais: um licenciamento moroso, a necessidade de matéria-prima com qualidade e a ausência de partilha de custos com a ligação à rede. “No nosso caso, só a ligação à rede são 2 milhões de euros”, exemplificando o caso da Tratolixo, que já tem um sistema a funcionar, e o que teria de pagar para passar do biogás para o biometano e a injeção de energia elétrica na rede, “num ativo que não vai ser nunca nosso e que tem um peso significativo”. Em países como a França, existe um modelo de partilha de investimentos que torna este tipo de projetos mais exequível, sublinhou depois.
O gestor lamentou que, em Portugal, “aproveitamos uma grande parte ainda hoje de uma fração que não é recolhida seletivamente”, o que compromete a qualidade do substrato para produção de biometano.
Reconhecimento de emissões: condição para a viabilidade
Jaime Braga, moderador do painel, frisou uma condição técnica essencial: o reconhecimento oficial da redução de emissões de gases com efeito de estufa para quem consome biometano certificado e com análise de ciclo de vida rigorosa. Sem este reconhecimento por parte do Estado, “não haverá investimento, porque não há clientes”.
A credibilidade do sistema de certificação e a confiança nos dados de sustentabilidade são, segundo os oradores, fatores decisivos para garantir a viabilidade económica do setor.
Um apelo claro à ação
O painel terminou com um apelo à mobilização. “Espero daqui a um ano não estarmos aqui ainda a bater exatamente e só nos mesmos pontos do costume”, afirmou Inês Baeta Neves. Nuno Soares reforçou: “Temos de inverter este paradigma, temos de agir”.