
Novas regras de partilha de infraestruturas geram desacordo no setor dos resíduos
O projeto de decreto-lei que introduz regras para a partilha de infraestruturas entre os Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU), a que o Água&Ambiente Online teve acesso, está a gerar reações divergentes e desconforto entre os principais operadores do setor.
O projeto de diploma, colocado em consulta de interessados pelo Governo, visa criar um regime de concorrência mínima e harmonizar regras entre sistemas multimunicipais e intermunicipais. No entanto, esta iniciativa legislativa está a levantar questões quanto à sua viabilidade prática e ao impacto nas operações atualmente existentes, tendo, desde já, a oposição da LIPOR - Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto e da ESGRA - Associação para a Gestão de Resíduos, que representa 16 entidades, incluindo 14 SGRU do continente e das ilhas, que discordam do modelo proposto, como confirmou o Ambiente Online junto dos seus representantes.
A proposta em causa vem definir um regime de partilha de infraestruturas, aplicável a operações de gestão e tratamento de resíduos urbanos. As infraestruturas, existentes ou novas, devem ser reconhecidas como de interesse regional ou nacional e passíveis de partilha, mediante aprovação governamental. Os contratos de partilha devem ser formalizados por escrito e monitorizados pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR).
O diploma exige ainda a consulta a pelo menos três sistemas para qualquer contrato de partilha de infraestruturas e prioriza o critério do preço mais baixo para a decisão.
Estas normas, embora concebidas para garantir transparência, enfrentam severas críticas por parte de representantes do setor.
Preocupações dos sistemas intermunicipais
José Manuel Ribeiro, Presidente do Conselho de Administração da LIPOR, louva a iniciativa, por vir preencher um vazio legal, mas entende que, no limite esta “não cumpre o objetivo pretendido”. Para o representante da LIPOR, o diploma falha, desde logo, ao centrar-se na partilha de infraestruturas de longa duração, ignorando a necessidade de flexibilização em situações de partilha pontual.
Outras das suas críticas dirigem-se à inadequação de aplicar uma lógica mercantil à gestão de resíduos e à obrigatoriedade de consultar três outros sistemas para cada contrato: “Não nos parece fazer sentido que um SGRU que esteja disponível para partilhar as suas instalações, lance um processo concursal convidando três outros sistemas para apresentar proposta - que podem nem ter interesse - e depois decida, por exemplo, não atendendo ao mérito ou à proximidade territorial, mas apenas tendo como critério o preço”, diz José Manuel Ribeiro. O foco, segundo a LIPOR, devia estar na criação de incentivos financeiros e regulatórios para promover a cooperação entre os sistemas, devendo ser dada a faculdade aos SGRU de, per si, tentarem encontrar as melhores soluções para a partilha.
Além disso, a ótica da partilha de instalações devia ser o interesse público, já que “a atividade dos SGRU não é feita num mercado concorrencial, em que uns competem com os outros”, reforça José Manuel Ribeiro, sublinhando que a prioridade deve ser a melhoria da eficiência e a minimização do impacto ambiental.
Paulo Praça, presidente da ESGRA, também questiona a complexidade do regime proposto, quando o que se pretendia era um modelo “simples e expedito”. Parece, por isso, ao presidente da ESGRA, “excessivo e desnecessário” o convite a três entidades, que “podem nem ter interesse em apresentar propostas” ou “não existir”. Como critérios mais adequados, Paulo Praça defende, ao invés do preço, a proximidade territorial e o menor impacto ambiental, para alinhar o regime com os objetivos de interesse público.
“Os SGRU devem ter autonomia para identificar soluções que melhor atendam ao interesse público”, afirma, sublinhando igualmente que a gestão de resíduos não é um mercado concorrencial.
O líder da ESGRA alerta ainda para a falta de apoios claros no diploma, o que pode comprometer a adesão e os resultados esperados.
A necessidade de harmonizar regras entre sistemas multimunicipais, que possuem participação privada, e intermunicipais, que são predominantemente públicos, é outro ponto sensível, na visão de Paulo Praça.
Apoio da EGF com reservas
Já Emídio Pinheiro, presidente do Conselho de Administração da Mota-Engil Ambiente e EGF, que detém 11 concessionárias a atuar em 174 municípios, expressa apoio ao diploma, mas com ressalvas. O gestor vê na partilha de infraestruturas uma oportunidade para otimizar recursos e mitigar impactos tarifários nos municípios, no entanto, também questiona a obrigatoriedade de consulta a três sistemas, especialmente em casos, como sucede com as centrais de valorização energética, em que a disponibilidade de infraestruturas é limitada. “Como se vai assegurar o cumprimento da referida norma neste caso?”, questiona.
Emídio Pinheiro também realça que a consulta, quando necessária, deveria focar-se na redução de custos operacionais e ambientais, em vez de se limitar ao critério do preço.
Uma matéria não acautelada no regime proposto, do ponto de vista da EGF, foram os estímulos regulatórios: “O regime deveria considerar incentivos regulatórios à partilha de infraestrutura”, estimulando “soluções de partilha”, propõe.
A formalização contratual e a monitorização anual pela APA e ERSAR, previstas no diploma, são vistas como avanços positivos para a transparência e a sustentabilidade económica do setor. Emídio Pinheiro destaca que a EGF já opera sob esse nível de escrutínio e vê nessas exigências uma oportunidade de melhoria contínua.
Dados do setor reforçam desafios
Os dados mais recentes evidenciam que ainda há um longo caminho a percorrer quanto à partilha de infraestruturas. Segundo o último Relatório Anual de Resíduos Urbanos (RARU), de 2023, esta partilha concentrou-se “essencialmente nos sistemas da Valorsul e LIPOR”, devido ao facto de estas disporem de instalações de incineração.
Já os dados dos Formulários do Mapa de Registo de Resíduos Urbanos disponibilizados através da Plataforma SILiAmb revelam que, em 2023, foram recebidas de outros SGRU 1581 toneladas em aterros pela Suldouro, 68 936 toneladas em unidades de Tratamento Mecânico e Biológico (da Valorlis, RSTJ e Resulima), apenas 6 toneladas em unidades de valorização orgânica, na LIPOR, e 1765 toneladas em incineração (446 na Valorsul e 1319 na LIPOR).