
A urgência de uma transição energética resiliente, segura e europeia não se apaga
O recente apagão elétrico que afetou simultaneamente Portugal e Espanha gerou um compreensível alarme e exigiu uma resposta firme. A rápida reposição do fornecimento de energia, a escassez de danos permanentes e a colaboração das diferentes entidades envolvidas reforçam a confiança numa ação ágil, eficaz e coordenada. No entanto, não podemos ignorar o sinal de alerta: um sistema elétrico moderno, em transição para a neutralidade carbónica, exige investimento e vigilância permanente.
É importante recordar que a Península Ibérica é uma ilha energética. A nossa geografia, em tantos aspetos tão vantajosa, traz também desafios. A nossa interligação com o resto da Europa está muito aquém do desejável e esse facto, ao contrário do que tem sido dito, é negativo e não positivo. Essa limitação, conjugada com uma elevada penetração de renováveis — intermitentes por natureza — coloca desafios ao sistema elétrico que é preciso acautelar. Ainda assim, o modelo ibérico continua a ser um exemplo de liderança climática, inovação tecnológica e compromisso com a descarbonização. Portugal tem hoje mais de 80% da eletricidade gerada a partir de fontes renováveis. Espanha, com mais escala, segue o mesmo caminho. Um percurso que tem trazido vantagens significativas e facilmente comprováveis: segundo a Eurostat, os preços de energia de 2024, tanto em Portugal como em Espanha, estiveram entre os mais competitivos da Europa, tanto para clientes residenciais, como para os industriais.
Se Portugal dependesse exclusivamente de centrais a gás, o preço grossista seria bastante mais elevado. Essa vantagem é particularmente relevante no contexto de uma Europa historicamente dependente de gás importado, com impacto direto na competitividade industrial. O índice de gás europeu, TTF, foi aproximadamente cinco vezes superior ao americano – excluindo os custos de CO2 que os EUA não cobram – o que se traduz em assimetrias significativas no preço da energia.
A Europa tem na transição energética uma oportunidade única — e na Península Ibérica, o seu maior caso de sucesso e, simultaneamente, uma das maiores fontes de potencial futuro.
A Europa tem na transição energética uma oportunidade única — e na Península Ibérica, o seu maior caso de sucesso e, simultaneamente, uma das maiores fontes de potencial futuro. Abandonar este modelo ou desacelerar a transição representaria não apenas um erro estratégico, como um retrocesso económico e ambiental.
Mas defender o atual sistema não significa negar os seus desafios. A rede elétrica ibérica, à semelhança da europeia, foi desenhada para uma realidade centralizada e previsível, em que havia poucos pontos de produção e um consumo mais descentralizado. Hoje, temos milhares de pequenos e médios produtores renováveis, fluxos variáveis e novos consumos intensivos, como os centros de dados, grandes indústrias, mobilidade elétrica ou mesmo perspetivas de eletrolisadores de hidrogénio.
Esta nova realidade exige uma contínua transformação das redes de transporte e distribuição: mais densificação, maior inteligência e capacidade de absorver renováveis de forma segura e previsível. Precisamos de digitalização, de planeamento integrado e de celeridade nos licenciamentos. É urgente investir significativamente nas redes elétricas, que são um dos maiores, se não o maior alicerce da transição energética. Não nos esqueçamos também que a atual infraestrutura está muito envelhecida: na Europa, mais de 30% da rede tem já mais de 40 anos.
Do lado da segurança de sistema, a eletrificação da economia, crescente e com excelentes perspetivas, exige uma abordagem moderna aos serviços de sistema. É necessário reforçar a regulação da frequência, garantir reservas de potência adequadas e substituir a inércia natural das centrais térmicas convencionais por soluções tecnológicas inovadoras, como sistemas de baterias e inversores avançados. A integração eficiente destas soluções, já disponíveis, depende de regulação clara, mercados adequados e incentivos à flexibilidade.
A Europa deu-nos o roteiro: descarbonizar, digitalizar, descentralizar — um movimento ao qual se juntam as várias regiões no mundo, que têm sucessivamente reforçado os compromissos de neutralidade carbónica com base na eletrificação e nas tecnologias renováveis, seja no âmbito do Acordo de Paris ou nas mais recentes COP. Agora, compete aos Estados-Membros garantir que esta transformação decorre com segurança, eficiência e justiça, aplicando as diretrizes aprovadas pela Comissão Europeia.
Em Portugal, isso significa acelerar os investimentos previstos nas redes, criando os quadros remuneratórios adequados para esse efeito, concluir as reformas regulamentares iniciadas, reforçar a supervisão técnica do sistema e garantir que operadores, reguladores e produtores atuam com total transparência e responsabilidade.
O apagão ibérico foi um episódio excecional e que de algum modo nos relembrou mais uma vez da importância da energia elétrica na nossa vida, mas serve e deve servir de teste de stress e de catalisador. A resposta não pode ser um regresso ao passado fóssil ou ao imobilismo. Deve ser, sim, um compromisso renovado com um sistema elétrico descarbonizado, resiliente e europeu.