Convenção de Albufeira em estado de letargia

Convenção de Albufeira em estado de letargia

Segundo as declarações do Ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, reproduzidas no Portal Ambiente Online em 18 de janeiro passado, Portugal “não está disponível” para rever a Convenção de Albufeira sobre gestão conjunta dos rios partilhados com Espanha, porque “sairia sempre prejudicado”. Estas declarações suscitam muitas preocupações que julgo serem partilhadas por todos quantos estão empenhados na melhoria do estado dos nossos rios.

Mais do que uma simples corrente de água, como a que sai de uma torneira, um rio é um fluxo rico e diversificado não só de água, mas também de sedimentos, energia e vida. Mais do que um canal de transporte de água, o rio é constituído pelo leito, com o seu substrato e as suas margens, pelas áreas inundaveis e pela vegetação ripícola. Os fluxos de vida e energia propagam-se não só de montante para jusante mas também de jusante para montante. A variação de caudais ao longo do ano, em que as cheias alternam com períodos de estiagem, de acordo com a própria variação climática, é um fator fundamental para assegurar a manutenção da riqueza e da diversidade ecológica que os rios constituem. Enquanto no caso da torneira podemos estar interessados apenas no volume de água que é debitado durante um certo intervalo de tempo, o rio é uma realidade bem mais complexa em que há que atender a muitos outros fatores.

O conceito de rio como entidade ecológica complexa foi o paradigma adotado na Diretiva-Quadro da Água, que constitui a base para o desenvolvimento da legislação sobre a água na União Europeia, e serviu de modelo para a legislação adotada em muitos países de outras regiões. Foi introduzido o conceito de “bom estado” das águas de superfície, que se fundamenta no estado de referência das massas de água correspondente ao estado do ecossistema na ausência de perturbações resultantes da atividade humana.

Foi este o paradigma adotado também na Convenção de Albufeira, acordada em 1998. O artigo 16º da Convenção estabelece, nomeadamente, que “as Partes, no seio da Comissão, definem, para cada bacia hidrográfica, de acordo com métodos adequados à sua especificidade, o regime de caudais necessário para garantir o bom estado das águas, os usos atuais e previsíveis…”. Como em 1998 o conceito de bom estado era muito recente, e não tinham sido ainda realizados os estudos necessários para definir esse regime de caudais necessário para garantir o bom estado das águas, foram adotados, num Protocolo Adicional à Convenção, volumes integrais de água que Espanha deveria garantir que fossem transferidos para Portugal anualmente, o que constituiu uma forma simplificada e provisória, de garantir a transferência de um mínimo de água de Espanha para Portugal enquanto aquele regime não fosse definido. Em 2006 o Protocolo Adicional foi revisto, tendo sido acordados volumes integrais de água numa base trimestral e, em alguns casos, semanal. No entanto, esta revisão continua a ser uma forma simplificada e provisória de assegurar um mínimo de transferência de água de Espanha para Portugal. Os volumes de água que foram acordados, continuam a ser muito insuficientes não tanto pelos valores integrais anuais, trimestrais ou mesmo semanais, mas pela distribuição no tempo desses volumes. No rio Tejo, por exemplo, onde a situação é mais crítica, basta o funcionamento da central hidroelétrica da barragem espanhola de Cedillo, na fronteira, durante duas horas para satisfazer o volume integral semanal que foi acordado. Nas restantes 166 horas da semana a transferência de água de Espanha para Portugal pode ser nula. Estas condições estão muito longe de constituir o regime de caudais necessário para garantir o bom estado das águas acordado em 1998.

Ou seja, a Convenção da Albufeira está muito longe de ser cumprida!

A indisponibilidade de Portugal resulta apenas da falta dos estudos que fundamentem a posição que se torna imperioso assumir perante Espanha. 

25 anos depois de assinada a Convenção temos de abandonar o estado de letargia que caracterizou a aplicação e o desenvolvimento da Convenção e promover a realização dos estudos necessários para definir o regime de caudais necessário para garantir o bom estado das águas dos rios partilhados com Espanha, como está definido no artigo 16º. E temos de negociar com Espanha o cumprimento desse regime que constitui uma obrigação legal estabelecida na Diretiva Quadro da Água que se aplica a ambos os Estados. Até porque Espanha já realizou esses estudos para os troços dos rios no seu próprio território, e o cumprimento do regime de caudais resultante já constitui uma obrigação legal em Espanha.

Estou de acordo com a afirmação do Ministro Duarte Cordeiro: Portugal “não está disponível” para rever a Convenção de Albufeira. Mas não pelas mesmas razões. A indisponibilidade de Portugal resulta apenas da falta dos estudos que fundamentem a posição que se torna imperioso assumir perante Espanha. 

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