Cultos ou “Incultos”: eis a questão

Cultos ou “Incultos”: eis a questão

De facto, compreende-se o quase desespero. Depois de uma revolução nas infraestruturas de recolha, tratamento e deposição de resíduos, levada a cabo há umas boas dezenas de anos com a ajuda comunitária, com a consequente, mas breve, passagem pelo quadro de honra europeu, o país passou rapidamente a mau aluno. Com objetivos cada vez mais exigentes na redução, na separação para Reciclagem de plásticos, vidro, metais, e com um Monstro, tal Adamastor, que é a o da separação de biorresíduos bem dentro das nossas cozinhas, o país parece rapidamente perder o pé. Na outra vertente, chegavam (e chegam), os Planos (PERSU, PERNU, etc.) que, em cadência regular, foram (e continuam) propondo novas metas e a sublinhar o não cumprimento das antigas.

Mas afinal até não se compreende o problema, porque o Gervásio, o chimpanzé do Ponto Verde, facilmente aprendeu a separar tudo o que deveria ser separado. Afinal, os animais, utilizando formas clássicas de condicionamento operante (baseado nos reforços), conseguem fazer facilmente coisas que os humanos, ou melhor os portugueses, têm dificuldade em levar a cabo.

Muitos responsáveis foram-se queixando que era muito difícil pôr as pessoas a separar, tardando muitos anos a ser mais incisivos e a generalizar sistemas de separação piloto (nos biorresíduos, no PAYPT, etc.) que foram continuando como ténues faróis num mar de lixo. Percebe-se, dizia, o desespero, que mau conselheiro, persegue sempre uma causa simples para problemas complexos. A ela está, amiúde, umbilicalmente ligada uma solução, brilhante como uma bala de prata.

Claro que já devíamos ter percebido antes que o problema era dos portugueses e da sua cultura. A solução surge cristalina: mude-se a cultura. Um grande concurso internacional está em preparação para introduzir uma grande mudança na cultura, ou será nas atitudes (?), ou será no comportamento (?) dos portugueses no que toca aos resíduos.

Está provado que utilizar este tipo de estratégia, baseada em apelos de valor com intuito de mudar comportamentos, só poderá levar a resultados medíocres.

Um dos problemas fundamentais na estratégia de promoção de comportamentos ambientalmente mais sustentáveis é o facto de grande parte dos programas se basearem, explícita ou implicitamente, na crença de que, dando conhecimento e informação os indivíduos, mais cedo ou mais tarde, adotarão o comportamento pretendido. Infelizmente, o comportamento tem que ver com contextos específicos, com atitudes e hábitos, com incentivos diferentes, que não resistem a soluções generalizáveis a todos os contextos. Está provado que utilizar este tipo de estratégia, baseada em apelos de valor com intuito de mudar comportamentos, só poderá levar a resultados medíocres.

Uma resposta integrada baseada na ciência é fundamental para o sucesso de uma campanha. Em Portugal, e no mundo, as atitudes face ao ambiente são geralmente positivas e não têm relação com o comportamento específico de separação de resíduos. Aquilo que determina o comportamento tem muito que ver com os incentivos, os hábitos, o design e o espaço, as normas, e isso depende de cada sistema. Vários estudos sobre fatores psicossociais e estruturas de separação, publicados nos últimos anos pela Erika Celestino, pela Professora Ana Carvalho (IST-UL), concluem que a separação europeia é muito diversa com números baixos em muitos países, que é necessária intervenção na separação para sistemas mais eficientes e que as campanhas têm de ser locais e sensíveis ao contexto psicossocial.

Apenas alguns exemplos de fatores a ter em conta:

  1. As normas são essenciais na definição da nossa vida social. No entanto, existem dois tipos de normas, a saber, as descritivas (i.e., que nos informam sobre o comportamento mais adaptado em cada situação) e as injuntivas (i.e., aquilo que deve ser feito ou, dito de outra forma, as regras morais aprovadas pela cultura). Em termos psicológicos, são muito diferentes. As descritivas levam a decisões simples e heurísticas, do tipo fazer o que os outros fazem, enquanto as injuntivas implicam uma avaliação mais profunda sobre o que devo fazer (avaliar a moralidade do comportamento). Ao sublinhar, ao mesmo tempo, a norma descritiva (poucos reciclam bem) e a injuntiva (todos devemos reciclar), grande parte dos programas acentua a discrepância entre o que se faz e que se deve fazer. Como o processo de influência descritiva é menos exigente psicologicamente e mais automático, estamos a contrariar aquilo que pretendemos alcançar. O sublinhar da norma descritiva vai levar a que o indivíduo não recicle, porque é o processo mais simples do ponto de vista de decisão. Como é bom de ver, esta contradição entre influências normativas é muito negativa, reforça o “mau” comportamento, e reforça outro processo psicológico que remete para a contradição entre a racionalidade individual e coletiva. Esta contradição conduz àquilo que parece mais simples e racional, do ponto de vista individual (não separar), que seja sobreposto ao que é mais racional do ponto de vista coletivo (separar).
  2. O envolvimento dos grupos, dos líderes dos bairros, a criação de normas descritivas positivas (“aqui separamos”) em vez de “as pessoas não separam”, a construção de identidades locais onde os comportamentos sustentáveis sejam componentes claros das mesmas, etc. são aspetos fundamentais de uma intervenção bem-sucedida.
  3. Separar os resíduos biodegradáveis, por exemplo, vai contra hábitos e não é simples. Campanhas que tornam tudo fácil são rapidamente rechaçadas. Porque existem barreiras ambientais, contextuais e familiares à separação, a saber: como se processa o armazenamento em casa, o nojo percebido dos biorresíduos, exigências acrescidas de higiene, as rotinas e a sua mudança, a (des)confiança no sistema, etc. Uma campanha deve claramente responder a essas barreiras e deverá identificá-las, porque não têm a mesma importância em todos os contextos.

Em suma, a maior barreira é, claramente, a ingenuidade de pensar que os valores abstratos têm ressonância em todos. Pelo contrário, as campanhas devem ser locais, precedidas pelo diagnóstico e sempre avaliadas no final.

Do meu ponto de vista, o que deveria fazer era lançar um concurso com regras científica e tecnicamente definidas para que os sistemas e as autarquias se candidatassem aplicando essas regras e aplicando-as aos seus casos particulares, porque, na separação como na vida, a resposta nunca é simples.

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