
Dar prioridade à realidade
No afã da política pública ambiental, têm-se multiplicado as obrigações, o nível de exigência das mesmas, bem como, consequentemente, a quantidade e diversidade de instrumentos legais; complicam-se os procedimentos para depois, e bem, simplificar; mas, ainda assim, distantes das necessidades reais do País em matéria de gestão de resíduos urbanos.
O enquadramento legal aplicável ao setor dos resíduos urbanos tem sofrido um conjunto enorme de alterações, quer ao nível da União Europeia, quer a nível nacional, tendo em conta que o País se encontra naturalmente condicionado.
Com a Diretiva 2008/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos, foi definido o enquadramento legal para o tratamento dos resíduos na União Europeia (UE), destinado a proteger o ambiente e a saúde humana, sublinhando a importância da utilização de técnicas adequadas de gestão, valorização e reciclagem dos resíduos, a fim de reduzir as pressões exercidas sobre os recursos e melhorar a sua utilização.
Esta Diretiva veio estabelecer a hierarquia de resíduos e confirmar o princípio do poluidor-pagador como pedra angular do enquadramento ambiental. Foram introduzidos o conceito de responsabilidade alargada do produtor e objetivos de reciclagem e de valorização dos resíduos domésticos e dos resíduos de construção e demolição, a concretizar até 2020.
Com o “Pacote de medidas para a Economia Circular”, houve lugar à revisão da Diretiva Resíduos 2008/98/CE, através da Diretiva (UE) 2018/851, do Parlamento e do Conselho, de 30 de maio, que veio estabelecer requisitos mínimos operacionais para os regimes de responsabilidade alargada do produtor; reforçar as regras relativas à prevenção de resíduos e determinar a obrigação de os Estados-Membros criarem medidas, entre outras, para apoiar modelos de produção e consumo sustentáveis; incentivar a conceção, o fabrico e a utilização de produtos que sejam eficientes em termos de recursos, duradouros, reparáveis, reutilizáveis e atualizáveis.
Esta Diretiva também prevê novas metas para a reciclagem de resíduos urbanos e a obrigação de os Estados-Membros assegurarem a separação e reciclagem na origem dos biorresíduos (por exemplo, através da compostagem) até 31 de dezembro de 2023, e, até 1 de janeiro de 2025, a recolha seletiva de resíduos têxteis e resíduos perigosos produzidos nas habitações.
Sem pôr em causa a importância e o papel do setor dos resíduos para o desenvolvimento sustentável e circular, a verdade é que os resíduos urbanos representam apenas cerca de 7 a 10% do total dos resíduos produzidos na União Europeia.
No entanto, a complexidade da gestão dos resíduos urbanos tem sido apontada como uma das razões para a necessidade de um sistema altamente complexo, incluindo um sistema de recolha eficiente, um sistema de triagem eficaz e uma correta rastreabilidade dos fluxos de resíduos, a par do envolvimento ativo dos cidadãos e das empresas, e de infraestruturas ajustadas à composição específica dos resíduos e um elaborado sistema de financiamento.
Em abono desta abordagem, a constatação de que os países que desenvolveram sistemas eficientes de gestão dos resíduos urbanos apresentam, de um modo geral, melhor desempenho ao nível da gestão global dos resíduos, incluindo o cumprimento das metas de reciclagem.
Neste contexto, a legislação nacional tornou obrigatória, já em 2025, a cargo dos municípios, a recolha seletiva dos resíduos têxteis, dos resíduos perigosos e dos resíduos de mobiliário e outros resíduos volumosos.
Acontece que, para que a implementação da recolha seletiva tenha o resultado esperado — que é aumentar a valorização dos resíduos e, consequentemente, cumprir os objetivos de reciclagem e de maximização dos recursos já disponíveis, evitando a exploração de matérias-primas — é preciso que existam soluções de valorização operacionais.
Vejamos então o caso dos têxteis. Apesar de a legislação nacional prever a recolha obrigatória de resíduos têxteis desde 1 de janeiro de 2025, a verdade é que, atualmente, não é conhecida ainda nenhuma solução em operação para a valorização dos resíduos urbanos de têxteis.
Assim, não se conhecendo soluções de valorização dos resíduos têxteis, e mantendo-se por definir um conjunto de conceitos e situações fundamentais para a implementação da sua recolha, importa fazer uma reflexão prévia e séria quanto à sua operacionalização, sob pena de se estarem a desenvolver esforços e canalizar recursos humanos, materiais e financeiros— sobretudo num País e num setor onde estes são particularmente escassos — para recolher e separar um fluxo de resíduos cujo único destino viável é o mesmo que já têm atualmente: a valorização energética e a deposição em aterro.
Outro fluxo cuja recolha seletiva se encontra prevista implementar em 2025, que merece igual preocupação, prende-se com os resíduos perigosos, no que respeita aos resíduos de autocuidados de saúde produzidos nas habitações.
A gestão deste fluxo específico de resíduos exige conhecimentos técnicos e condições de tratamento muito exigentes e distintas das condições existentes [...] Tudo condições que atualmente não existem e que exigem um enorme investimento.
A gestão deste fluxo específico de resíduos exige conhecimentos técnicos e condições de tratamento muito exigentes e distintas das condições existentes, como é o caso das condições de refrigeração do seu armazenamento, de logística especializada e contínua, bem como a formação técnica adequada dos colaboradores envolvidos. Tudo condições que atualmente não existem e que exigem um enorme investimento.
Ora, na nossa perspetiva, a solução mais eficaz e segura seria manter a entrega destes resíduos nas unidades de saúde familiares, que já dispõem de condições adequadas e contratos para o seu correto encaminhamento e tratamento.
Tal não significa qualquer desvio da importância de promover a recolha seletiva, antes pelo contrário, significa apenas dar prioridade à necessidade de opções racionais, razoáveis e, sobretudo, eficientes num País de fracos recursos.
Assim, e sendo o fluxo de resíduos urbanos dos mais complexos de gerir, o modo como é gerido dá, geralmente, uma boa indicação da qualidade do sistema global de gestão de resíduos de um país, pelo que é preciso estabelecer prioridades e criar as condições necessárias para as executar.
Portugal acabou de aprovar um plano de ação para o setor que estabelece prioridades, a primeira é, certamente, acertar com a realidade.