
Perdas na baixa: o que se retira do mais recente RASARP?
Afigura-se legítimo afirmar que o tema da água não faturada nas redes de distribuição de abastecimento (as famosas “piscinas”, nas avisadas palavras do Dr. Nuno Campilho), independentemente do grau de intensidade de atenção política que conjunturalmente vá merecendo, tem estado há décadas no centro das preocupações setoriais. Em Portugal e um pouco por todo o mundo, com poucas exceções.
Tomando como mote os mais recentes dados publicados pela ERSAR no seu Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (2023), relembremos alguns grandes números bem conhecidos: atualmente, a média aritmética entre entidades gestoras (EG) do indicador de água não faturada (ANF) situa-se em 37%. Se Portugal continental fosse só uma única entidade gestora (como o Professor Joaquim Poças Martins costuma sublinhar), este indicador (média ponderada pela dimensão das EG) seria de 26,9%. Atendendo a que este valor, em 2011, era de 30,7%, compreende-se o tom de algum “desalento” com que este parco progresso, ao longo de mais de 10 anos, é avaliado no comentário setorial.
Três realidades têm sido amplamente documentadas ao longo do tempo: a percentagem de ANF está estatisticamente correlacionada de forma significativa com a dimensão da EG (“economias de escala”), o seu modelo de gestão e a tipologia da sua área de intervenção (rural, urbana ou intermédia). Tomando o caso do modelo de gestão, começamos por, na figura seguinte, atualizar os dados publicados em 2017, em estudo elaborado para a AEPSA – Associação de Empresas Portuguesas do Sector do Ambiente pelo Professor Rui Cunha Marques:
Questão também amplamente documentada na literatura técnica e científica do setor é a utilização do indicador “Perdas por Ramal”, expresso em litros por ramal/dia, como forma de “neutralizar o efeito escala” na avaliação do desempenho das EG. Citando a ERSAR: “pretende-se avaliar o nível de sustentabilidade ambiental do serviço em termos da eficiência na utilização de recursos ambientais no que respeita às perdas reais de água (fugas e extravasamentos), enquanto bem escasso que exige uma gestão racional”. O quadro seguinte, documenta este fenómeno:
Este quadro explora igualmente outras duas variantes destes indicadores. Consideramos de especial interesse como indicador complementar a ANF expressa em litros por ramal/dia. Se a estimativa de perdas por erros de medição, em 80% das EG, se situa entre 2 e 6% do volume faturado, já o impacto de consumos autorizados, mas não faturados, é assimétrico e passível de introduzir distorções na análise. Quando significativos, trata-se tipicamente de usos municipais, nem formalmente faturados pela EG, nem corretamente valorizados através de preços de transferência economicamente fundamentados, consoante o caso. Se para 50% das EG este fenómeno representa zero ou menos de 4% em relação ao volume faturado, encontramos 20% de EG para quem ele é equivalente a mais de 15% do volume faturado.
Munidos deste referencial de análise, no quadro seguinte assinalamos o grau de correlação estatística entre os indicadores de perdas e outros indicadores, eventualmente associados ou mesmo potencialmente explicativos. Como os resultados são muito similares, utilize-se no “numerador” a ANF ou as Perdas Reais, opta-se por apresentar os resultados utilizando a ANF:
Numa análise detalhada destes resultados, importa ter presente que “correlação” não significa “causalidade” e que muitos dos fatores analisados estão, por sua vez, frequentemente correlacionados entre si de forma significativa. Fazê-lo aqui implicaria várias páginas adicionais a este já longo artigo.
Sem prejuízo, uma conclusão global evidenciada pelos dados importa aqui sublinhar: enquanto a percentagem de ANF apresenta múltiplas correlações, quer com fatores de gestão como com características da área servida (exógenas à EG ou “fatores de contexto”), a mesma ANF, expressa em litros por ramal/dia, apresenta correlações essencialmente com fatores que se prendem com o governo e gestão das entidades gestoras, pelo que evidencia as suas boas propriedades como indicador ao “neutralizar” o impacto de fatores de contexto na comparação de desempenho entre distintas EG.