Proposta de Revisão da Diretiva das Águas Residuais Urbanas: desafios e dificuldades

Proposta de Revisão da Diretiva das Águas Residuais Urbanas: desafios e dificuldades

O processo de revisão de diretivas comunitárias mais antigas à luz da Diretiva Quadro da Água (DQA), do Green Deal, Economia Circular, entre outros, é fundamental para o atingir dos objetivos ambientais e económicos preconizados para a Europa. Mas este caminho deve ser realizado de forma sustentável, garantindo os princípios de proporcionalidade, sem esquecer as especificidades de cada região, tal como definido no Tratado da União. A revisão das Diretivas do Consumo Humano, Emissões Industriais e as agora em curso, Águas Residuais Urbanas (DARU) e Águas Balneares, visam dar passos significativos para o controlo das principais pressões para atingir os objetivos ambientais da DQA. Faltou incluir a revisão da Diretiva Nitratos, trazendo maior coerência e uma avaliação de custo-benefício mais eficaz.

No que se refere ao cumprimento dos requisitos da DARU, os últimos dados aprovados (2018) revelam uma taxa nacional de cumprimento de 92% quanto à carga gerada. Para cumprir este desígnio, Portugal iniciou, em 1993, uma reforma do setor, passando a dispor, desde 2000, de uma estratégia nacional materializada em planos, que permitiram passar de um nível de tratamento de águas residuais de 28% para cerca de 86% em 2021.

Tal implicou investimentos de grande vulto e sobretudo de alteração da governança, com um investimento superior a 6400 M€ só para os serviços de gestão de águas residuais. Em fase de aprovação, o PENSAARP 30 passa a integrar a gestão das águas pluviais e propõe-se atingir serviços de excelência para todos, internalizando os custos, prevendo um investimento de 2590 M€ para a gestão de águas residuais e de 400 M€ para as águas pluviais.

Em outubro de 2022, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de revisão da DARU, substituindo uma diretiva com mais de 30 anos. Esta revisão era já necessária até pelo impacto que o setor urbano ainda tem ao nível das cargas afluentes às massas de água. O estado das massas de água no 3.º ciclo de planeamento evidencia que apenas 45% das superficiais e 65% das subterrâneas estão em Bom estado, sendo que as descargas urbanas constituem uma pressão significativa para 33% das massas de água superficiais e para 13% das subterrâneas.

A proposta de revisão apresentada é ousada, com um nível de ambição e de proteção ambiental elevado, no entanto, as exigências técnicas preconizadas e os prazos previstos (quase impossíveis) implicam grandes dificuldades, com impactos ao nível da sustentabilidade dos sistemas, não parecendo garantir sempre uma relação custo-benefício equilibrada. Das principais alterações salientam-se:

  • Obrigar, até final de 2035, todas as rejeições de aglomerações ≥100 000 e.p. ao tratamento terciário (remoção de N e P com valores de descarga de 6 e 0,5 mg/L, respetivamente) e quaternário (remoção de micropoluentes), independentemente das características da massa de água recetora. A mesma obrigação é imposta para ETAR entre aquele limiar e 10 000 e.p. que descarreguem em zonas sensíveis ou em risco até 2040 (art.ºs 7.º e 8.º).

Intensificar os tratamentos para diminuir as cargas associadas às descargas é importante, mas a decisão da sua implementação não deveria ser pela dimensão da população servida mas determinada pela avaliação dos riscos, considerando as características do meio recetor, interligando as caraterísticas de cada rejeição (localização e carga) com as diversas condicionantes e especificidades do meio recetor (suscetibilidade à poluição, usos e hidrodinamismo), definindo os valores limite de emissão através da abordagem combinada (art.º. 10.º da DQA). Esta avaliação dos riscos deveria ainda contemplar a interligação entre descarga e reutilização, com a possibilidade de recuperação de nutrientes na rega agrícola. Assim, o disposto no artigo 18.º da proposta de revisão deveria ser alargado, integrando esta possibilidade, em consonância com o que consta na diretiva consumo humano no Regulamento da água para reutilização e, ainda, nas conclusões de estudos da rede IMPEL[1], que demonstram que a avaliação dos riscos e consequente definição de VLE pela abordagem combinada permitem uma maior circularidade e promoção dos valores naturais e um maior equilíbrio entre os custos e benefícios.

  • Aplicar um mecanismo de Responsabilidade Produtiva Estendida (RPE) aos produtores de produtos farmacêuticos e cosméticos para financiar o sistema quaternário. Interessante, mas de difícil implementação. Acresce que os prazos para implementar o tratamento quaternário não parecem ser compatíveis com a implementação de um esquema sólido de REP, exigindo um esforço financeiro inicial pelos sistemas. E porquê só estes setores?
  • Baixar o limiar das aglomerações incluídas para 1000 e.p, que até 2030 garantem ligação à rede de drenagem e tratamento no mínimo secundário, impondo ainda este nível de tratamento aos sistemas individuais (art.ºs 3.º e 4.º). É necessário um maior controle de descargas em aglomerações de menor dimensão, mas o nível de tratamento deve também ser associado a uma avaliação dos riscos, com uma análise de custo-benefício para decidir a substituição de soluções locais que funcionam bem.
  • Elaborar planos para gestão integrada para combate à poluição das contribuições pluviais (descargas de emergência e overflows) para aglomerados ≥10 000 e.p. até 2035 e as restantes até 2040, sendo que nestes casos aplica-se às que constituam um risco para o ambiente e saúde pública, limitando ainda a descarga por overflow a 1% da carga total de tempo seco. As descargas de efluentes não-domésticos nas redes ficam sujeitas à emissão de licença, pelo prazo de 6 anos. Estas medidas serão de aplicação difícil e bastante onerosas, apesar de ser urgente uma estratégia para as descargas indevidas.
  • Atingir a neutralidade energética nas ETAR ≥10 000 e.p. até 2040. Mas o aumento das exigências em tratamento, alguns com elevados consumos energéticos, poderá dificultar as metas propostas no prazo estabelecido. Acresce que a utilização de fontes renováveis para suprir 100% das necessidades pode não ser exequível, quer por limitação de espaço, de fontes renováveis disponíveis e custos, nomeadamente em sistemas de pequena dimensão.
  • Eliminar o atual artigo 6.º, deixando de existir áreas menos sensíveis, sem definir período de transição. Com a eliminação deste artigo, o tratamento pode passar do nível primário ao nível terciário e quaternário, sendo que, em alguns casos, com baixos benefícios para a massa de água, quando a descarga se efetua por emissário para o Oceano, facto que tem vindo a ser demonstrado na monitorização realizada.

A opção de tratamento tendo por base unicamente a carga poderá não ser suficiente para a obtenção do bom estado do meio recetor, exigindo custos desproporcionados face ao real benefício, além de poder gerar externalidades ambientais negativas, designadamente, o aumento do consumo energético, de produtos químicos ou o incremento da produção de lamas. Por outro lado, contraria os princípios da economia circular ao promover a remoção de nutrientes das águas para reutilização que depois terão de ser compensados com fertilizantes de origem química na rega agrícola.

 


[1] (https://www.impel.eu/en/projects/wastewater-in-natural-environment-wi-ne)

 

Texto publicado na edição julho/agosto 2023 do Jornal Água&Ambiente

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