Reutilização de águas residuais e dessalinização – 40 anos em slow motion

Reutilização de águas residuais e dessalinização – 40 anos em slow motion

Uma cantora brasileira, Beth Carvalho, dizia que ninguém pode traçar o seu futuro esquecendo o seu passado. Lembrei-me do que ela disse ao escrever este texto. O que pode explicar tanto atraso relativamente a uma matéria que não tem nada de novidade?

Lembremos então o passado…

A primeira vez que ouvi falar em reutilização de águas residuais tratadas, hoje águas para reutilização (ApR), foi no final da década de 70, quando o Prof. Lobato Faria, com quem trabalhava, avançou como forma de regar o campo de golfe de Palmares, em Lagos, a utilização do efluente de uma ETAR. Tal ideia foi de imediato recusada pelos operadores turísticos, que disseram que os ingleses, antes de darem uma tacada difícil, davam um beijo na bola e que, por isso, seria um grande perigo. Como ensinamento, podemos reter que uma “boca” de quem nada percebe pode inviabilizar uma boa solução.

Ainda no final de 70, um exemplo de como são necessários decisores que talhem a direito para se resolver um problema. Não havia água em Porto Santo, como solução, sugeriam-se barcaças ou mesmo uma conduta entre ilhas. Um técnico governamental recomendou ao Governo Regional a construção de uma dessalinizadora. De imediato, muitas vozes avançaram que isso era um tratamento para as Arábias. Contrariando estes Adamastores, avançou-se com a sua construção pelo sistema de osmose inversa, OI (o primeiro na Europa). Novo ensinamento, quando há um problema, surgem dezenas de “especialistas” que rejeitam toda e qualquer solução; só se avança se houver quem decida sem receios.

Na década de 80, começou a perceber-se que as rejeições dos efluentes no mar o contaminavam, apesar da diluição. Na Comunidade Europeia, preparava-se legislação que impunha o tratamento secundário antes da descarga. Em Portugal, fazendo orelhas moucas do que se ouvia em Bruxelas, continuava-se a descarregar os efluentes no mar após uma simples gradagem. Resultado, quando a legislação europeia foi transposta para a nacional, houve que ampliar as gradagens com o tratamento secundário, com custos muito superiores e com grandes dificuldades em encontrar área. Novo ensinamento, optamos pelo facilitismo mesmo sabendo que vamos ter problemas no futuro.

Em 90, após mais um período de seca, o campo de golfe dos Salgados via os seus furos tornarem-se salobros. Ao mesmo tempo, o município de Albufeira não lhes podia ceder toda a água que precisavam porque era necessária para o consumo doméstico. A ESPART, que era a empresa detentora do empreendimento, em vez de ficar a carpir-se, procurou uma solução. Esta passou por negociar com a Câmara Municipal de Silves a cedência das águas residuais da ETAR de Armação de Pera por 15 anos. Imaginem o Presidente quando na audiência viu “uns maduros” a pedirem-lhe o esgoto secundário a troco de controlarem a ETAR. Autorizado o pedido, construiu-se o sistema terciário e passou a regar-se o golfe com 2000 m3/d. Deste facto e da operação durante sete anos, tirámos duas lições: os privados têm de fazer parte da solução e não ficar à espera de que o Estado resolva os seus problemas; a segunda, só se consegue um bom terciário se o secundário tiver o nível correspondente.

E, ainda nesta década, a ETAR da Penha Longa deu-nos novo ensinamento. O empreendimento em Sintra, ao tempo pertença da AOKI, viu o nível dos seus furos baixar muito com a seca. Decidiu construir uma ETAR com terciário para regar o golfe, em vez de descarregar os esgotos na rede de drenagem de Cascais, município também fronteiro. A ETAR funcionou enquanto preciso. Passados anos, os furos recuperaram; a ETAR continuava em funcionamento, não havendo quase descargas de esgotos para a rede. Contudo, a tarifa que Cascais aplicava era função do consumo do contador pelo que, mesmo sem esgotos, cobrava bastante. Face a este pagamento, a empresa decidiu parar a ETAR e descarregar diretamente para a rede. O que aprendemos: os tarifários, além de cobrirem os custos, devem fomentar as boas práticas ambientais.

A concluir-se os anos 90, no projeto da EXPO, previu-se uma conduta para trazer as ApR da ETAR de Beirolas para regar os jardins. Só mais de 20 anos depois começa-se a utilizar o efluente. Como tudo demora no país!

E entramos no novo milénio com muitos históricos do setor a continuar a defender que a reutilização das águas residuais não faz sentido e muito menos a dessalinização. Apesar do que é dito na Agenda 21 e do que é remendado pelos organismos internacionais, defendem a manutenção dos sistemas tradicionais. Os episódios de seca são cada vez mais frequentes, mas não se quer abrir os olhos a novas soluções (novas, só em Portugal!). Também se manteve a conceção de sistemas regionais para as águas residuais, com uma grande ETAR a servir múltiplos aglomerados. Com estes sistemas, colocaram-se fora de serviço muitas ETAR junto a povoações, o que agora vem dificultar a reutilização das ApR pela extensão das condutas.

Felizmente, há quem não negue as novas tecnologias. O grupo Pestana, após participar num curso sobre dessalinização, avançou com a construção de uma dessalinizadora no Alvor para regar os seus jardins. Também o Vila Vita Park aproveitou um furo salinizado para tratar a água por OI e regar os seus jardins. Parece ser um movimento imparável pois que, à data, mais dois empreendimentos privados querem solucionar a falta de água com dessalinizadoras.

Mais se verifica que muitos privados que têm as suas próprias ETAR (indústria e hotelaria) as querem beneficiar com sistemas terciários para reutilizar as suas águas. A conceção de duas redes de água (sistema dual), uma para água potável, rede primária, e outra para usos secundários, será o futuro. Mas para que seja viável é preciso que, desde já, os regulamentos municipais e os planos de pormenor os prevejam.

No sentido de procurar novas fontes de água, também o Governo aponta a construção de duas dessalinizadoras, uma no Algarve, outra em Mira. Ao mesmo tempo, revê a legislação para venda das ApR através das multimunicipais.

Mas de boas intenções temos mais de 40 anos. O que tememos? Tememos que nada se tenha aprendido com a história. Que a não decisão prevaleça, que a burocracia impere; que se dificultem as iniciativas privadas; que se privilegie a venda da água primária por razões económicas em vez de fomentar o uso das ApR.

Haja vontade para contrariar esta história.

Topo
Este site utiliza cookies da Google para disponibilizar os respetivos serviços e para analisar o tráfego. O seu endereço IP e agente do utilizador são partilhados com a Google, bem como o desempenho e a métrica de segurança, para assegurar a qualidade do serviço, gerar as estatísticas de utilização e detetar e resolver abusos de endereço.